segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Educação: Questões de Metodologia 3

                               O recurso a uma bibliografia aberta

Numa investigação, assume importância a bibliografia consultada.
Tratando-se de pesquisa sobre a Educação e porque ela, de algum modo, atinge todos os campos da existência, impõe-se recorrer a uma bibliografia aberta, que acolha todos os autores (da raiz indo-europeia *IE Aug-, “aumentar”) revestidos de autoridade para augurar, auxiliar, aumentar a nossa capacidade de abordagem, aprofundamento e compreensão do tema.
Mais concretamente, importa recorrer:
            -a todos os que escreveram sobre educação e, como escritores, nos legaram as suas obras;
- mas também a todos aqueles que, nada tendo escrito (por ex. Sócrates e Jesus), souberam falar (da raiz *IE Bha-, que envolve sentidos de luz e de falar) e assim se transformaram em epifanias de luz nos caminhos da vida, como os pais para os filhos e os pedagogos para os alunos, ou se tornaram profissionais da palavra, desde  os  professores aos profetas;
- e ainda a todos aqueles que, nesta função de educar, acabaram por se revelar os mais ou os maiores (lat. magis), a merecerem o nome de mestres (lat. magister);
- e, finalmente, a todos aqueles que, sofrendo de afasia ou incapacidade de falar, acabaram apenas mugindo (da raiz onomatopaica mu- “fechamento dos lábios”, da qual, através do latim mutus, recebemos a palavra mudo e, através do grego múō, “fechar os olhos ou a boca”, recebemos as palavras místico e mistério).

Constitui certamente uma surpresa podermos verificar, nesta amálgama de situações, que a cada nível de maior dificuldade de expressão, parece corresponder um nível de maior aprofundamento do tema.
Ensaiemos a abordagem dos diferentes tipos de autores, pela ordem crescente de aprofundamento sobre o que é educação: professores, educadores, artistas, mestres, profetas e místicos.

A.      Os Professores.

São comummente aceites como os principais actores e autores da educação, enquanto:
profissionais de saber falar, nas aulas das instituições de ensino, sobre as diversas matérias de aprendizagem dos alunos;
- cientistas, pela razão de terem sido formados nas instituições de ensino superior, de acordo com os métodos científicos adequados;
- especialistas, por serem considerados portadores de espírito científico e de competência pedagógica nas respectivas áreas.
Trata-se de uma situação totalmente positiva que importa manter e incentivar.

Mas, por outro lado, há que prestar a máxima atenção às transformações que, na ciência ainda marcada pela progressiva fragmentação em compartimentos estanques e pela pulverização desses compartimentos numa infinidade de especializações, vêm sendo
 - reclamadas por comentadores esclarecidos:

  “os nossos problemas são, cada vez mais, do foro global e admitem apenas soluções globais”, “os homens ergueram muros altos que separam os ramos do conhecimento essencial a esta demanda – as várias ciências, políticas, religiões, éticas” (Carl Sagan e A. Druyan);

- incrementadas pela intervenção poderosa de cientistas em diversas áreas: de A. Einstein a P. Dirac e W. Heisenberg nas Ciências Físicas, de Von Bertalanffy a E. Morin nas Ciências Sociais, de R. Jakobson a R. Barthes e N. Chomsky na Linguística, do grupo da História Nova dos Annales à equipa da História da Humanidade (UNESCO) na História, etc.;
- confirmadas nos resultados obtidos em diferentes sectores: após a emergência da teoria quântica, a Química integra-se na Física; as descobertas da Genética são arrumadas na Bioquímica; outras descobertas dão origem às teorias da Auto-Eco-Organização; a História tende a privilegiar a “compreensão do Anthropos” e a “inteligência das Culturas”; chega-se ao reconhecimento de que “a biblioteca da nossa própria formação hereditária, o genoma humano, revela-nos hoje que a Biologia é muito mais como a Língua e a História do que como a Física e a Química” (Carl Sagan e A. Druyan).
A tudo isto, importa ainda somar as eventuais deficiências de carácter educacional (ensinar é só uma parte de educar) e de carácter pedagógico (a normal ausência de trabalho em equipa, por parte dos professores, em ordem a proporcionar aos alunos a assimilação integrada das diversas matérias).

Entretanto, a par de todo o progresso na procura de uma visão global da realidade, prossegue, e bem, o desenvolvimento de cada ciência e o aperfeiçoamento dos respectivos especialistas. Nalgumas delas – Física, Economia, Medicina – alguns deles vêm merecidamente recebendo a distinção do Prémio Nobel. Com todo o respeito e simpatia pelos contemplados e na perspectiva acima registada de que “os nossos problemas são, cada vez mais, do foro global e admitem apenas soluções globais”, teremos no entanto de admitir que, em termos de bibliografia educacional, se trata dos autores maiores entre os mais pequenos.

B.      Os Educadores

Da raiz *IE Deuk-, Duk-, “conduzir, guiar, liderar”, diremos, numa primeira abordagem, que se trata daqueles que, conjugando esses verbos, caminham, pelo exemplo, à frente dos educandos.
Próximos deles situam-se os pedagogos cuja etimologia, remontando da tradicionalmente citada em língua grega (soma das raízes pais, -dos, “criança” + agein, “conduzir”) à indo-europeia (soma das raízes *IE Pu-, “rebento de vida” +Ag-, “empurrar”), envolve a ideia de que eles, levando pela mão os educandos, os conduzem e, se necessário, os arrastam e empurram nos caminhos da existência.
Em contraposição com as micro-perspectivas dos especialistas citados na alínea anterior, trata-se aqui do que poderíamos designar macro-visão dos generalistas, na ciência de criar todas as condições e procurar remover todos os obstáculos para que os educandos aprendam a discernir e trilhar o caminho de uma vida verdadeiramente humana.
Para isso, importa adoptar atitudes do género daquelas que E. Morin, depois de as adoptar no seu percurso pessoal, propõe a todos os educadores:
- a atenção a todas as dimensões do verdadeiro método;
- a exigência do pensamento complexo no que respeita a

“uma tomada de consciência radical: a causa profunda do erro não está no erro de facto (falsa percepção) ou no erro lógico (incoerência), mas no modo de organização do nosso saber em sistemas de ideias (teorias, ideologias), […] modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e apreender a complexidade do real” (Edgar Morin).

- os Sete Saberes para a Educação do Futuro que, no livro elaborado a convite da Unesco, resumiu deste modo: “as cegueiras do conhecimento (o erro e a ilusão); os princípios de um conhecimento pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrestre; enfrentar as incertezas; ensinar a compreensão; a ética do género humano”. 

É a posse desta sabedoria que distingue quem são os verdadeiros educadores, de acordo com a hierarquia universalmente aceite:
- no plano familiar, por natureza, os pais, universalmente reconhecidos (nº 3 do Art.º 26 da Declaração Universal dos Direitos do Homem) como, não uns mas os educadores dos seus filhos;
- no plano social, por vocação, os pedagogos, como colaboradores dos pais, incluindo nesta designação os professores que, na expressão  de Olivier Reboul, para além de ensinarem, “enquanto ensinam educam”;
- no plano político, e já desde os primitivos agrupamentos humanos, os patriarcas e todos aqueles que, sendo por conquista, por hereditariedade ou por escolha democrática colocados à frente dos povos, se puseram ao serviço das comunidades humanas como verdadeiros Pais da Pátria, desde o projecto, fracassado, é certo, mas generoso dos Filósofos na República de Platão, até à tradição milenária do mandarinato no Império da China.
- no plano social e nos dias que correm, muitos galardoados com o Prémio Nobel da Paz que, nas condições difíceis que atravessa o Mundo global de hoje, obtiveram jus a serem considerados verdadeiros exemplos para a educação da humanidade.

C.       Os artistas

É impressionante o facto de, nos alvores da civilização, os avanços técnicos virem sempre acompanhados de manifestações de arte que, simultaneamente, se constituem padrões do nível do desenvolvimento e da educação atingido pelos diversos grupos humanos. Mais significativo ainda é o facto de, nos séculos posteriores à invenção da escrita e em diversas áreas culturais, os escritores mais inspirados e criativos serem agraciados com o título de Educadores, como os Autores dos Velhos livros religiosos dos Avestas à Bíblia e ao Corão, Homero Educador da Grécia, Virgílio Educador de Roma e, desde Dante e Shakespeare, tantos Educadores de áreas culturais do Ocidente e de outra regiões do Mundo.
Mesmo em tempos de hegemonia da razão como o do iluminismo ocidental, já desde Pascal e por obra de Blondel, Nietzsche, Levinas e outros mais, o árbitro epistémico tendeu sempre a deslocar-se da instância da mera racionalidade, do conhecimento, do saber, da verdade, para algures na instância do além-razão, do sentimento, do querer, da liberdade, do afecto, do coração, dos valores, do bem.
E nos dias que passam, a partir de António Damásio e Daniel Goleman, com a descoberta do que se vem convencionando designar “os dois cérebros, duas mentes e dois tipos de esfera da inteligência, racional e emocional”, o registo de que “o cérebro emocional está tão envolvido no raciocínio como o cérebro racional”, chega-se à conclusão de que se

“o velho paradigma postulava um ideal da razão livre de qualquer constrangimento emocional, o novo paradigma incita-nos a harmonizar a cabeça e o coração” (D. Goleman).

É também neste contexto que, em rotura com a linha pragmatista de aceitação da verdade como correspondência linguagem-mundo, R. Rorty nos recorda a exigência da superação dos discursos literais por discursos metafóricos e ainda, perante a aceleração actual da mudança a que indivíduos, povos e culturas nos encontramos sujeitos, no que se refere a introduzir permanentemente vocabulários, linguagens e discursos novos, incita-nos a todos a aprofundar a arte de reinterpretar, redescrever e reconstextualizar o mundo. E àqueles que se mostram capazes deste esforço dinâmico, po(i)ético, criativo, sem fim à vista, dá ele o nome de Poetas fortes.
Por sua vez, Harold Bloom, defendendo que os critérios para distinguir os autores da Grande Literatura não vêm das ideologias, mas do nível de dignidade estética em testemunhar e exprimir as mais profundas experiências da existência humana, atribui a esses escritores o nome de Autores  fortes.
E, reconhecendo que existiram em todos os tempos, desde os autores da epopeia de Gilgamesh e do Mahabharata, até aos da Bíblia e do Corão, procurou fixar o Canon dos maiores do Ocidente, de Dante e Shakespeare a Kafka e Brecht.

Outros críticos vêm procurando estabelecer cânones semelhantes noutras áreas artísticas, arquitectura, escultura, pintura, música e canto, cinema e desportos.
E a atribuição anual de Prémios Nobel de Literatura e distinções similares nos outros sectores de Arte, constitui um justo reconhecimento da função educacional de todos eles, como testemunhas vivas das mais profundas experiências da misteriosa vida dos seres humanos, sabendo que

“cada um tem em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos insaciados de desejos e de amores, de abismos de infelicidade, imensidades de indiferença gelada, abrasamentos de astros em fogo, explosões de ódio, desvarios débeis, clarões de lucidez, tempestades dementes” (citado por Edgar Morin).

D.            Os Mestres.

A pergunta, muitas vezes repetida, sobre quem é o melhor educador, a conduzir, a apontar o caminho, a dar o exemplo de como chegar à plena realização pessoal e, por extensão, comunitária e cósmica, obtém sempre a mesma resposta: é o que mais longe chegou, mais alto subiu, o Mais (lat. Magis), o Mestre (lat. Magister). E, por milhares de milhões de pessoas, são apontados como exemplos Confúcio e Lao Tseo na China, Buda e Mahawira na Índia, Zoroastro na Pérsia, Sócrates no Ocidente.

Começando pelo último, mais próximo de nós, impressiona a sua humildade (“não sei nada”, “sábios, sábios só os deuses”) e, na sequência da atitude questionadora dos que o precederam na Grécia (Pré-socráticos) sobre tudo o que nos rodeia (“que é, porque é tudo isto), a atitude de dobrar-se sobre si próprio (“conhece-te a ti mesmo”),  base da procura, do Amor da Sabedoria ou  Filo-Sofia.
É este elã tremendo, no sentido mais radical da fórmula bergsoniana, que a todos nos leva a tudo indagar, pesquisar, questionar, desde a criança de 4 anos (“e porquê?”), aos adolescentes alunos da disciplina de Filosofia e aos adultos doutorados em todas e quaisquer especialidades científicas que, na tradição inglesa de origem medieval, recebem o título de Ph. D. = Philosophiæ Doctor = Doutor no Amor da Sabedoria.
E é ainda a mesma força que leva a UNESCO, desde o seu Acto Constitutivo (1945) e o Projecto para a Filosofia (1946) até à Declaração de Paris para a Filosofia (1995), a promover o estudo da Filosofia e a colocá-la ao serviço da Educação, como disciplina central de todo o currículo da formação humana.

Mas a seguir, na sequência da declaração atribuída a Robert Kennedy:

 “Há homens que vêem as coisas que são e perguntam porquê?
Eu sonho coisas que nunca foram e pergunto porque não?”

os Mestres despertam-nos e arrastam-nos para irmos mais além da sabedoria, no caminho do sonho:
- “ I have a dream”, “eu tenho um sonho” (Luther King),
- “pelo sonho é que vamos” (Sebastião da Gama),
                   - e vamos todos nós, com toda a compreensão pelos indecisos,     enquanto

“Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer […]

Eles não sabem nem sonham
que o sonho comanda a vida,
que, sempre que um homem sonha,
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança”  (António Gedeão).

Deste modo, no Universo em que nos encontramos, tudo recebemos, sabemos que devemos, que devemos dar e assim completar-nos ou realizar-nos, os Mestres, espalhados por todos os continentes, são aqueles que descobriram o caminho a seguir, estão a caminhar, e nos vão dizendo coisas sobre essa experiência:
- que não há outra saída: “A vida é um país estrangeiro […]. Temos de ir. Para onde? Não sei, mas temos de ir” (Jack Kerouak);
 - que é tarde para recuar: “Não sei para onde vou, mas já vou a caminho” (Carl Sandburg );
- que temos companhia: “Não sei para onde vou, mas sei com quem vou” (Edite Stein);
- que a maneira de avançar é só uma: “El camino se hace caminando” (António Machado);
- e é só um,  também, o rumo a seguir: “Aproximar-nos do que está longínquo” (Martin Heidegger).
Afinal, trata-se de pormenores acerca do mesmo e único caminho pessoal apontado pelos grandes Mestres do Oriente:
- o Caminho do meio, na “Audição” (Hinduísmo) ou  na “Iluminação” (Budismo);
- Xintó ou o Caminho dos Deuses (Xintoismo);
- Tao ou, simplesmente, O Caminho (Taoismo).

E.      Os Profetas

Desde há milénios, mas desta vez ao redor da região do Crescente Fértil, a História lembra-nos também os Mestres Maiores que, chegados ao termo do Caminho, no Sinai, na Galileia ou no Deserto, afirmam terem-se encontrado com o Máximo e terem regressado com a missão de transmitirem aos Povos as palavras d’ Ele, recebendo, por isso, o nome de Profetas (os que falam em nome do Outro), entre os quais emergem Moisés, Jesus, Maomé.
A adesão que estes Profetas recebem hoje de cerca de metade dos 7000 milhões de seres humanos justifica plenamente a atribuição que lhes é feita do título de Educadores e do lugar que merecem na bibliografia educacional. O que também se torna válido, na devida proporção, para a lista de outros profetas que aparecem ao longo da História.
Com efeito, as tremendas dificuldades resultantes da crise actual, do ambiente à economia, à política e à cultura, reforçam essa atribuição prioritária, como sublinham Atlan, Goblot, Hannoun, Fullat, entre outros, tendo o primeiro referido a eventualidade de o nosso tempo se encontrar maduro para o “retorno dos profetas”. O que pode acontecer de muitas maneiras.

Entre os 26 Autores Fortes incluídos no Cânon Ocidental de H. Bloom, encontram-se Walt Witman e Fernando Pessoa.
O primeiro, ao distinguir três instâncias no seu eu: a Alma (soul) mais ligada à realidade natural, o Eu (self) que traduz a identidade de um americano agressivo, um dos duros do Oeste, e o Eu Verdadeiro ou Eu, Eu Mesmo (real me or me myself) que exprime o Eu na sua relação com o Mistério, reconhece que é na obediência a esta instância superior que pessoalmente se sente realizado.
Fernando Pessoa assimila a mesma distinção e, através de um percurso, que passa por criar a Escola interior dos seus heterónimos em que o Mestre é Alberto Caeiro, ver-se ele próprio aceite como Mestre pelos contemporâneos e confessar a Ofélia que o “meu destino […] está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam”, revela seguir sempre o seu Eu Superior, Profundo, Verdadeiro, o Eu, Eu mesmo e, assim, ter entrado na “divina consciência da minha missão”, ou seja, “ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização”.
Estes simples exemplos, entre outros possíveis, revelam duas coisas: que os Mestres que seguem o caminho até ao fim e se encontram com o Outro, regressam normalmente cheios das palavras d’ Ele e com a missão de as transmitirem aos outros caminhantes; que essas palavras já não têm a ver            apenas com o caminho pessoal a trilhar por cada um, mas com o caminho a seguir pela inteira comunidade dos ouvintes.
É assim que o Caminho de que nos falam os Profetas passa agora a ser o Caminho dos Povos:
- o  Caminho do Êxodo, da Diáspora ou do Retorno (Judaísmo),
- o Caminho Certo no Deserto (oração Salat, no Islamismo),
- outra vez, simplesmente, O Caminho (primeiro nome histórico do Cristianismo).

F.       Os Místicos

Ao se aproximarem do fim do Caminho e se encontrarem, face a face, com o Mistério, os Grandes Mestres regressam a transmitirem-nos as Palavras d’ Ele, de maneira confusa e imperfeita (através de metáforas, alegorias, parémias, apólogos, parábolas) o que se compreende pela dificuldade em traduzir a Linguagem de Deus para a linguagem dos homens.
Mas deixam-nos também a impressão de, nesse contacto, terem ficado presos, perdidos, integrados no núcleo secreto do próprio Mistério. Caminharam como Mestres, regressaram como Profetas, tornaram-se Místicos.

Conscientes de estarmos a entrar num terreno extremamente delicado (em todos os tempos e lugares vêm proliferando “sociedades secretas” que, ao envolverem-se em mantos pretensamente relacionados com o mistério, permitem aos seus membros defender os próprios interesses, por vezes à custa da exploração dos outros seres humanos), é possível constatar que, em todas as etapas da evolução do sentimento religioso, deparamos com o fenómeno místico protagonizado por xamãs, gurus, rabinos, monges, sufís, roshis…
Também aqui, Fernando Pessoa, referindo-se às práticas de ascese no caminho das ” formas de educação do mal para o bem (não há educação de outra forma)”, balbucia coisas sobre o “misticismo que é ter o sentimento nítido de uma coisa que se não sabe o que é”, acrescentando que se acede a ele através do processo iniciático (néofito-adepto-mestre) e ainda que, “por não ser a iniciação em conhecimento mas uma vida”, esses privilegiados “não apenas apreenderão as palavras em que se exprimem, mas viverão por si próprios as suas vidas”, evidentemente ao nível do Eu Superior, Profundo, Verdadeiro, o Eu, Eu mesmo.

Trata-se de um processo em que as palavras falham, mas a vida cresce.
É assim que os grandes místicos, ao falarem deste encontro entre o humano e o divino, se apresentam pujantes de vida mas apenas capazes de balbuciar sobre ela: falam de união transformante, de comunhão crescente, de fusão total, como acontece com duas velas acesas que se juntam numa só chama, ou como a gota de água que cai e se dissolve no oceano, ou ainda, em termos caseiros antigos, como o fermento que leveda toda a massa ou, em termos científicos modernos, como um processo químico de diálise do ser humano no meio divino.
Nesta situação, as considerações iniciais com que iniciámos este texto sobre Questões de Metodologia (recebemos + sabemos que devemos + que devemos dar), mudam radicalmente de sentido na experiência dos Místicos: “nós recebemos porque Alguém nos dá, nós sabemos que devemos porque Alguém nos ilumina, nós devemos pagar, dar, porque Alguém espera por nós e de nós.
Em síntese, tudo nos acontece porque tudo nos vem do e dentro do Mistério que é o puro Dom, que é o verbo Amar.
Como um “fogo que arde sem se ver”, que gera em nós um “contentamento descontente”, talvez porque tudo é muito claro dentro da escuridão:

        “Bem eu sei a fonte que mana e corre,
        embora seja noite” ( São João da Cruz).


domingo, 13 de novembro de 2011

Educação: Questões de Metodologia 2

A linguagem da Educação

Em qualquer tipo de investigação, uma das questões fundamentais tem a ver com a linguagem.
“A falar é que a gente se entende”, diz o povo. Mas isto só acontece quando é claro o sentido das palavras.
Restringindo-nos ao nosso campo, podemos perguntar: qual é o sentido da palavra educação? Mas não precipitemos a resposta. Ela pode beneficiar de uma reflexão prévia sobre as coordenadas do tempo e do espaço em que nos toca viver.

Continua entre nós a debater-se o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, perspectivado em 1911, estabelecido em 1990, entrado em execução a partir de 2009.
O debate, na sequência das duas principais tradições da escrita, de base fonética ou de base etimológica, e porque o Acordo privilegia a primeira delas, continua a oscilar entre duas posições opostas:
- de aceitação, a partir do orgulho nacional pela língua de um pequeno País que se tornou uma das mais faladas do Mundo à escala intercontinental e se transformou, no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em veículo de uma cultura comum de tradições, sentimentos, afectos e valores, cuja unidade, tanto mais ameaçada quanto maiores são as diferenças entre as diversas comunidades dos falantes, importa preservar a todo o custo, no sentido da proclamação de Fernando Pessoa “a minha Pátria é a Língua Portuguesa”;
- de rejeição, atendendo ao facto de que o português deriva do latim, a língua do Império Romano aquém do Reno e Danúbio e que essencialmente importa evitar que a progressiva cedência à simplificação fonética dos vocábulos acabe por apagar e destruir os traços da fisionomia etimológica ou, como diríamos hoje, do código genético, do genoma, do ADN herdados da língua-mãe.

Pessoalmente considero que a boa solução deverá encontrar o equilíbrio entre as duas vertentes: por um lado, reconhecer que o ritmo de aceleração da mudança, no mundo global em que nos toca viver, continuará a privilegiar a vantagem de atender à base fonética como meio de manter a unidade da língua e, por outro lado, estar bem consciente de que a maior exigência da própria comunicação entre os falantes obriga a preservar, por todos os meios, o sentido etimológico das palavras, o seu étimo que, em grego, significa “o nome verdadeiro das coisa segundo a sua origem”.
Nesta ordem de ideias, impõe-se adoptar na cultura nacional duas medidas: a primeira, a longo prazo, visará arrepiar caminho do inacreditável abandono a que vêm sendo votados, nas nossas Universidades, os Cursos de Línguas, Literaturas e Culturas Clássicas; a segunda, a curto prazo, consistirá em promover, com toda a urgência, a reforma dos dicionários escolares no sentido de incluírem, obrigatoriamente e na medida correspondente a cada grau de ensino, referência á etimologia de todas e cada uma das palavras. Existe o bom exemplo do dicionário Houaiss.

Mas neste ponto e nesta fase de construção da cidadania europeia, o estudo na área da educação, como aliás em qualquer outra área, pode e deve obrigar-nos a ir mais longe.
O latim brota do tronco comum de todas as línguas faladas desde Portugal ao Bangladesh (com excepção do basco, húngaro e finlando-estoniano) que é o chamado indo-europeu.
O reencontro das raízes desta remota língua-mãe resulta de um processo de “serendipidade”, palavra registada no dicionário Houaiss como “aptidão, faculdade ou dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou descobri-las por acaso”, e é tradução da palavra inglesa serendipity , cunhada em 1754 pelo escritor inglês H. Walpole (1717-1797), “a partir do conto de fadas Os três Príncipes de Serendip (do árabe Sarandib, antigo nome do Sri Lanka) cujos heróis faziam sempre descobertas, acidentalmente ou por sagacidade, de coisas que não procuravam”. Edgar Morin, depois de mencionar a arte de modernos investigadores que, a partir de simples indícios, descobriram novos horizontes do Micro e do Macrocosmo, da Biologia e da Genética, da Paleontologia e da Pré-história, define a serendipidade como “a arte de transformar detalhes aparentemente insignificantes em indícios permitindo reconstituir toda uma história”. Na área das línguas, apesar das dúvidas que permanecem sobre o espaço e o tempo do território original do proto-indo-europeu e das dificuldades iniciais, a investigação vem sendo feita por autores como A. Zamboni, Grandsaignes d’ Hauterive e Heckler, Chantraine, G. Devoto, A. G. da Cunha, Alain Rey, Corominas y Pascual, Ernout-Meillet, etc.
Já no que diz respeito à Educação, é conhecido o esforço do Álvaro Gomes que a partir da constatação de que “também as palavras têm o seu curriculum vitae”, estudando “as marcas linguísticas, os rastos e os restos dessas cristalografias semânticas, como se duma espécie de isótopo 16 ou de carbono 14 linguístico se tratasse”, remonta a “mais de sessenta” raízes de interesse para a educação e procede a amplas análises no âmbito da metadidática.
A importância crescente atribuída à etimologia por modernos dicionários (ver Houaiss) incita-nos a remontar aos étimos que, a este nível, se revelam fontes de galáxias de nomes, chegados até nós, através de variadíssimos percursos.
No blogue e com as cautelas devidas, proponho-me tirar partido deste método. E, pela experiência adquirida, estou certo de que vamos ficar convencidos do enriquecimento que ele nos pode proporcionar.