segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Educação: Questões de Metodologia

No mundo em que vivemos, o ritmo de aceleração da mudança vem tornando a tarefa de educar extremamente complexa e difícil, a exigir cada vez mais atenção, conhecimento e treino.
Impõe-se adoptar a metodologia adequada (método, do grego metá, “com ou através de” + odos, “caminho”) para acertar em cheio no caminho. Neste sentido, propomo-nos abordar os pontos que seguem: partir da situação concreta em que nos encontramos, não esquecer as lições da História recente, ter em conta as dimensões fundamentais da experiência humana, os problemas da linguagem, o recurso a uma bibliografia aberta, a adopção de uma estratégia clara.

                                  Ponto de partida: a situação de crise

Vivemos tempos de crise. E nos diversos campos da nossa existência: financeiro e económico, pessoal e sociopolítico, cultural e ético, religioso e místico.
Em cada um dos campos, existe um conjunto de realidades às quais, na avaliação corrente da vida, atribuímos importância, peso, preço, e a que damos o nome de valores como, por exemplo: a moeda e seus derivados no campo financeiro; os produtos da natureza e do trabalho, bens móveis e imóveis, no campo económico; a vida, a saúde, a dignidade, a honra, a solidariedade no campo pessoal e sociopolítico; a verdade, o conhecimento, a ciência, a beleza e a arte, no campo da cultura; a liberdade, o bem, a justiça, no campo ético; a fraternidade e o sacrifício no campo religioso; a bondade e o amor no campo místico.
Desde sempre, em cada um dos campos, os seres humanos desenvolvem processos de transacção entre os valores: de compra e venda, empréstimo, troca, doação, entrega recíproca. No limite, estes processos implicam sempre, como regra fundamental da transacção, o duplo movimento de receber e dar: quem recebe fica a dever e deve pagar, normalmente com juros.
Onde acontece uma crise? No descontrolo das transacções, quando seres humanos, ou por não se contentarem com o que recebem eles próprios procuram apoderar-se do que recebem os outros, ou por decidirem egoisticamente deter e reter o que receberam, ou por não trabalharem para fazer render o capital recebido, ou por mal- gastarem o recebido e o adquirido, acabam na situação de não pretenderem ou não conseguirem pagar o que devem, no todo (dívida) ou em parte (défice).
A crise agrava-se quando o descontrolo se estende ao conjunto dos campos, quando se pretende chegar ao controlo de uns (por exemplo, do financeiro e económico) à custa do descontrolo de outros (por exemplo, do cultural e do ético), quando não se respeita a hierarquia dos valores que exige colocar os materiais (financeiros e económicos) ao serviço dos pessoais e sociopolíticos, respeitando sempre a transcendência dos valores culturais e éticos, religiosos e místicos.
Em qualquer caso, a crise acaba por tornar-se insustentável se os seres humanos, conscientes, livres e responsáveis, esquecem a regra fundamental das transacções: quem recebe, sabe que fica a dever e que, por isso, deve pagar.

          Lição da História: a Declaração Universal dos Direitos do Homem

Neste momento histórico de crise global que se propaga desde a tempestade nas áreas financeira e económica até ao “choque de civilizações”, “às guerras religiosas” e ao “terrorismo internacional”, a evocação de outro período da História recente pode ajudar-nos a focalizar melhor a essência da crise e do caminho para a ultrapassar.
Trata-se da crise da II Guerra Mundial (1939-1945), que envolveu povos de todos os continentes, provocou a subversão de todos os sistemas de valores e culminou na cifra de 40 milhões de mortos.

O Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948), primeiro documento histórico resultante do consenso de todos os Povos da Terra, abre com as palavras (sublinhados nossos):
“O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da Família Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”,
para, a seguir, acrescentar que “o advento de um mundo” com estas características (Mundo dos Valores) “foi proclamado como a mais alta aspiração do homem”, como objectivo que supõe o compromisso de sobre ele adoptarmos “uma concepção comum” e “como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”, “pelo ensino e educação”.
Acontece que a palavra dignidade, do latim dignus, relacionada com a palavra decência, do latim decet, deriva da raiz indo-europeia *IE Dek-, variante Dak-, que envolve a ideia de receber.
Quer dizer que o conceito de dignidade envolve o que todos os membros da Família Humana recebemos: a categoria de seres conscientes, livres e responsáveis, com todas as consequência (direitos e deveres) que lhe são inerentes.

Mas o documento acrescenta que o reconhecimento desta dignidade, constitui o fundamento “do mundo dos valores”.
Por outras palavras, está a dizer que quem recebe a dignidade humana com os valores que lhe são anexos, deve dar conta, estar consciente, saber que, a partir desse momento, está a dever e tem que procurar colocar-se em condições que lhe permitam pagar.
Entre essas condições, mencionam-se duas fundamentais: a consciência dos deveres e a procura de uma concepção comum acerca deles. Infelizmente é nestes pontos que residem as duas maiores fraquezas do documento:
a)                      a primeira é que em vez de apresentar a única realidade subjacente à dupla face de  deveres e direitos (aos deveres de uns correspondem os direitos de outros e vice-versa), começa por ceder, no título e no texto do documento, à ingénita cobardia humana de mencionar apenas a face dos direitos, silenciando a face dos deveres;
b)                     a segunda é citar apenas a importância da necessidade de todos os povos procurarem uma concepção comum destes direitos (e deveres), sem avançar medidas para alcançar esse objectivo que hoje continua a manter-se longínquo, por exemplo, nas “escolas de teologia” dos talibãs.

O documento passa a ser rigoroso no que diz respeito à prossecução do “ideal comum” do Mundo dos Valores “a atingir por todos os povos e todas as nações”, ao propor que “todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente em espírito, se esforcem” por chegar lá ”pelo ensino e educação”.
Deste modo, e nesta perspectiva englobante de todos os Valores, confirma-se a absoluta necessidade de cumprir a regra: quem recebe, sabe que deve e deve esforçar-se por também dar.

                     As dimensões fundamentais da experiência humana

Não existo apenas eu. Ou tu. Afastados ou isolados. Existimos nós. E, assim, unidos. O plural de eu não é “eus” mas “nós”.
E andamos a falar uns com os outros.
E, por vezes, fazemos perguntas: que(m) somos? que sabemos? que devemos fazer?
Procuremos respostas simples e claras.


A.                      Há momentos na vida em que temos de nos identificar. Fazemo-lo apresentando o “Bilhete de Identidade” ou o “Cartão de Cidadão: nome, nascido em …, no dia tal …, filho de … e de …, nacionalidade, residência.
Deste modo, pensamos estar a mostrar quem somos (nome, nascimento), onde estamos (local em que nascemos e residimos), que temos (pais, idade, etc.).
Ora, se bem reparamos e medimos a força das palavras, verificamos que não é bem assim.
- Nós não “somos”. Apenas vivemos. Por um breve período de tempo. Desde que nascemos, enquanto crescemos, até que morremos.
 - Nós não “estamos”, mas transitamos, caminhamos, andamos, passamos, vimos e vamos, de e para.
- Nós nada “temos” ou possuímos por nós próprios, mas tudo recebemos, a começar pela vida, os pais que nos geraram, o nome que nos deram, a terra em que nascemos, todos os haveres, bens ou valores que transportamos no percurso das nossas existências.
Em resumo: na vida, nada temos mas tudo recebemos.
E isto é verdade, entendendo o verbo “recebemos” no sentido não apenas do pretérito perfeito mas também do presente indicativo: não recebemos a vida, no início, de uma vez por todas, mas continuamos a recebe-la em cada momento do presente, até que chegará o momento final de a perder.
Provavelmente, nada disto se torna claro aos olhos da cara ou da razão. Como dizia o Principezinho, chegado à Terra de outro Planeta, “o essencial é invisível aos olhos”, “só se vê bem com o coração”. E, nesta medida, somente é certo e claro que viver é receber.

B.                      Por outro lado, nós pouco ou nada sabemos. Apenas, depois de sermos gerados, nascermos e crescermos durante os primeiros anos, “nos encontrámos”, ou seja, começámos a dar conta, a tomar consciência, a procurar apreender, aprender, mas sem compreender:  
- onde estamos: na aldeia ou cidade, no País, na Comunidade Europeia, no Planeta Terra, parte de um sistema solar dentro de uma galáxia de 300 mil milhões de estrelas, que, por sua vez, faz parte de uma super-galáxia entre milhares de milhões de outras super-galáxias, num universo em expansão acelerada de que ignoramos a estrutura e as fronteiras ou mesmo se as tem …
- como parte de uma comunidade familiar, dentro das comunidades local, regional, nacional, mundial ou global que é a Família Humana, último elo da evolução da vida na Terra desde há 4,5 mil milhões de anos, cuja origem continuamos a desconhecer …
- integrados num percurso pessoal em que, a pesar do orgulho que mostramos a partir da ilusão de que sabemos tanto quanto a ciência, acerca da natureza e do Homem, progrediu ao longo de séculos, sentimos  que a lei do tudo ou do nada também aqui se impõe – enquanto não chegarmos a saber tudo continuamos a não saber nada – no sentido que já obrigava Sócrates a confessar “não sei nada”, “só sei que nada sei” e “quanto mais sei, mais sei que nada sei”
E, no limite, apenas se mantém o saber radical: tudo recebemos e por isso tudo estamos a dever.

C.                       Finalmente, nós não somos independentes, na medida em que não somos donos ou senhores de nada. Nem sequer somos inteiros, completos, realizados, porquanto, no nosso viver, uma vez que o recebemos no passado, continuamos a recebe-lo no presente e iremos perde-lo em qualquer próximo futuro, ainda não atingimos a plenitude. Quem vive, ainda não está completo.
Vejamos melhor.
- Em termos do vocabulário económico-financeiro, uma vez que recebemos e devemos, estamos dependentes dos dadores e, por definição, só depois de pagarmos, de saldarmos a nossa dívida (sem défice e com juros), nos sentiremos libertos e independentes.
- Já na linguagem antropológica e sociopolítica, chegamos à mesma conclusão: para sermos em parte, basta receber, mas para sermos na totalidade é preciso também dar. O que se encontra na base da necessidade de crescermos e em dois sentidos: pessoalmente para adquirirmos e socialmente, na relação com os outros, para treinarmos a capacidade de dar: crescemos na medida em que damos, até sermos capazes de dar tudo.
- Em termos que relevam do campo da cultura e da ética, o tudo de cada um de nós abarca não só o que se tem mas também o que se é. Para quem se recebeu todo, o pagamento da dívida corresponde a dar-se todo; só agindo deste modo, deixaremos de ser todos meros recebedores para nos tornarmos também dadores e, ao fechar assim o círculo do dom, nos sentirmos realizados, perfeitos, acabados, completos.
- Finalmente e já no vocabulário religioso e místico: receber-se é ser amado (por alguém); dar-se é amar (alguém). Um gesto implica o outro. Um movimento atrai o outro. Como cantava Francisco de Assis: “é dando que se recebe”. Dando-se todo, recebe-se todo. Dando tudo, recebe-se tudo. Entramos assim no Mistério que nos envolve, das origens (recebemos porque Alguém dá) e dos fins (damos porque Alguém recebe), no círculo do Amor, que nunca acabará.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A Educação Hoje

A educação tem a ver com o essencial das nossas vidas: o seu despontar, o seu desenvolvimento e o seu destino.
Nos dias de hoje, desde que, na sequência das experiências traumáticas da II Guerra Mundial (1939-1945) e pela primeira vez na História da Humanidade, os diferentes povos da terra (“Nações Unidas”) ensaiaram falar a mesma linguagem, começou a crescer na Comunidade Planetária o consenso sobre uma filosofia e uma política da Educação capaz de constituir o fundamento de uma estratégia e de um programa de acção comum.
Neste passo histórico, tão grande para cada ser humano como para toda a humanidade,  através de documentos da ONU como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Declaração do Milénio (2000), a que se deverão juntar os Relatórios das Conferências Mundiais sobre Educação de Adultos (promovidas pela UNESCO desde 1949), é atribuído um lugar de máximo relevo à educação ou, falando em termos mais concretos, à conjugação do verbo educar .
É assim que, ao longo da segunda metade do século XX, a partir das grandes “reformas do sistema educativo (décadas 40 e 50), da contestação de que se tornam objecto (década 60 e 70) e da crise que se abate sobre o subsistema escolar, alastram experiências, concepções e práticas que provocam a emergência de novos sectores educativos, desde  o subsistema de educação de infância totalmente reconceptualizado e do subsistema de educação de adultos em múltiplas modalidades (formação contínua e recorrente, alfabetização funcional, reconversão profissional, etc.)  até à sua progressiva integração enquanto duas fases do processo de educação ao longo da vida  de cada um de nós, dentro dos processos de educação comunitária da Família Humana a que pertencemos e de educação ecossistémica na relação com o Universo de que fazemos parte.
Mas, como o Director-Geral da UNESCO, René Maheu, já fazia notar na Conferência Mundial de Tókio (1972), se realizámos tão grandes progressos no que respeita à adopção do vocabulário referente às diversas dimensões do novo paradigma da educação, já o mesmo não acontece no que se refere à assimilação e compreensão do seu novo conceito.
É mesmo estranho e de algum modo incompreensível que os responsáveis dos Estados Membros das Organizações Internacionais que elaboraram, aprovaram e assinaram os documentos acima referidos, não os ponham em execução e que os cidadãos continuem a não os ter em conta ou mesmo a nem sequer os conhecer.
A própria investigação, nas instituições de educação superior, desenvolve-se em grande parte à margem deles, continuando assim a educação a manter-se desligada ou afastada da investigação sobre o desenvolvimento do ser humano dentro da comunidade global, como se fosse normal e possível educar sem procurarmos compreender todo o seu contexto.
Tudo isto coloca-nos perante a urgência de explorarmos e aprofundarmos o sentido e o alcance do verbo educar.
É o tema geral deste blogue