quarta-feira, 13 de junho de 2012

VIVER

                                                          EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA
                                                                   Etapas, Sentidos, Conceito (1)
  
A educação ao longo da vida, como novo paradigma da educação, emerge no início da década 70 e no âmbito das conferências mundiais promovidas pela Unesco, quando a educação escolar, expressão do paradigma tradicional a ser contestado nos anos 60 (basta lembrar Maio de 68 em França) e a educação de adultos a abrir caminho desde os anos 50, entram em processo de síntese integradora (3ª Conferência Mundial de Educação de Adultos, Tóquio, 1972).
Nos anos seguintes e na sequência do regresso de Portugal à Unesco após o 25 de Abril, entra na língua portuguesa a expressão vocabular correspondente, a partir da tradução de textos das línguas oficiais daquela Instituição: nos primeiros anos, do francês “education permanente” para “educação permanente”, designação que se generalizou e eu próprio adoptei e introduzi na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, Lisboa /São Paulo, no vol. 19 da 1ª edição (1979) e no vol. 9 da edição séc. XXI, (1999) e ainda no Dicionário da Pedagogia, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1980; mais tarde, confirmada a preponderância da língua inglesa, do inglês “life long education” para “educação ao longo da vida”.
Hoje podemos reconhecer a vantagem de utilizarmos a segunda tradução porquanto, nesta fórmula, de sabor empirista tanto ao gosto da cultura anglo-saxónica, aparece mais clara a verdadeira ligação entre educação e vida, no que diz respeito às etapas do percurso, aos sentidos da linguagem e ao próprio conceito actual de educação. Vejamos por partes.

1.      AS ETAPAS

As duas grandes etapas do processo educacional, reconhecidas nos anos 70 pelas designações educação escolar e educação de adultos, vinham sofrendo e continuaram a sofrer até aos nossos dias, profundas e inesperadas transformações. Abordemo-las com muito cuidado, tendo em conta a sua complexidade.

Educação escolar
Em 1912, Emile Durkheim descrevia deste modo a ideia de educação vigente na época:

“Toda a educação consiste num esforço contínuo para impôr à criança, modos de ver, de pensar e de agir, aos quais não teria chegado espontaneamente e que lhe são exigidos
pela sociedade no seu conjunto e pelo meio social a que é particularmente destinada”.

Esta descrição que hoje, passado apenas um século, nos deixa completamente estarrecidos, para além de reduzir “toda a educação” à actividade exercida sobre “a criança”, sintetiza bem as quatro vertentes que a “educação escolar” foi revelando ao longo da história. Examinemos cada uma delas, pela ordem inversa da sua apresentação no texto citado.

Exigências do “meio social a que [a criança] é particularmente destinada”.
No princípio não foi assim.
Os primeiros grupos humanos, tribos de nómadas e recolectores, constituíam uma grande família em que os produtos da caça, da pesca ou do campo, o milho, o trigo ou o arroz, eram angariados por todos e por todos distribuídos. As crianças, depois da sua iniciação nos mitos e ritos da tribo, entravam neste processo da vida comum.
Não existiam classes sociais.
É com o advento das sociedades mais complexas, constituídas por cidades, reinos ou impérios, das guerras e conflitos entre elas e das consequências de passar a haver vencedores e vencidos, que emerge a diferença entre os homens livres e os homens escravos e, pelo meio, entre os mais e os menos na infindável hierarquia das castas e classes sociais. Ficava assim marcada a fronteira nítida ou deslizante entre as elites e as massas ou, mais cruamente dito, entre os seres humanos que se mantinham ao nível de “pessoas” e aqueles que deslizavam ou acabavam por ficar reduzidos a simples “coisas”.
E isto ao longo de toda a história:
- entre os mandarins e os agricultores nas dinastias do império da China, e entre os membros superiores e inferiores no rígido sistema de castas a partir do período neo-védico (1000 a. C.) da Índia;
- entre os politoi ou cives e todos os outros na era clássica ocidental greco-romana;
- entre os habitantes do império bizantino e os das emergentes nações latino-germânicas da Europa, por um lado, e os habitantes dos espaços circundantes, por outro, sklabēnoi para os bizantinos e servi para os latino-germânicos, hoje eslavos e sérvios;
- na época medieval, entre os homens livres do clero, da nobreza e mais tarde da burguesia e os “servos da gleba” dos campos e a “arraia miúda” das cidades;
- já nos tempos modernos, entre os conquistadores do Novo Mundo e os escravos negros traficados para as “plantações esclavistas das Américas (Tropical, Norte e Sul);
- nos tempos mais recentes, entre as camadas superiores e inferiores das populações de fieis das igrejas modernas, de súbditos de Sua Majestade no antigo regime, de patriotas das pátrias no regime novo, de cidadãos  das nações na actualidade;
- no Mundo Global dos dias de hoje, entre os dois lados do fosso que separa os países desenvolvidos  e os subdesenvolvidos também eufemisticamente designados “em vias de desenvolvimento”.

Exigências da “sociedade no seu conjunto”
A diferença essencial entre as duas classes extremas em que a sociedade se encontrava dividida incidia sobre o emprego do tempo: enquanto os homens escravos eram forçados a gastá-lo integralmente no trabalho de angariação dos recursos de vida para todos, os homens livres passavam a ser os únicos a dispor da sua totalidade para o empregarem no próprio desenvolvimento.
É sobre esta base que, ao logo da idade clássica ocidental, a educação começa a ser adjectivada de escolar e em dois sentidos subsequentes.
Da raiz *IE Segh- que envolve a ideia de “agarrar, manter”, vêm os substantivos scholé em grego e schola em latim, com o significado de tempo livre, paragem, descanso, lazer, ócio. Assim, num primeiro período histórico, a educação é entendida como escolar no sentido do tempo livre de que os seres humanos livres dispõem para dedicar-se à cultura. Posteriormente, e porque a aquisição organizada da cultura pressupõe também esforço e trabalho, escola passa a entender-se em ligação com a raiz * IE (S)teud-, “empurrar, bater”, donde vem a palavra estudo (e outras como tunda, contundente, obtuso, etc.) e torna-se objecto de uma expressiva metamorfose semântica:

O termo schola não é sinónimo de ócio e lazer, significa, isto sim, que, deixando de parte as demais ocupações, as crianças devem dar-se aos estudos próprios de homens livres (Gramático Fexto, séc. III).
Z
Considera-se que, deste modo, ficam asseguradas, a partir do trabalho braçal dos escravos a satisfação das necessidades da economia e a partir do esforço de estudo dos homens livres as necessidades da cultura da “sociedade no seu conjunto”.

“Modos de ver, de pensar e de agir aos quais [a criança] não teria chegado espontaneamente”.
A par do natural sentimento de ternura perante a cria humana, coexiste ao longo da história, a tendência para a considerar não como “ser vivo”, “sujeito” de um processo natural de desenvolvimento, mas como “objecto” ou “coisa” que se pode usar e abusar, mutilar, vender, abandonar, matar. Alguns tópicos destes tipos de tratamento:
- sobre a Grécia, Marrou fala de “uma civilização que ignora deliberadamente a criança”;
- em Roma, o pater-famílias  possuía sobre os filhos o “jus vitӕ necisque”, ou seja, o direito de vida e de morte;
- a mutilação, por razões religiosas ou sociais, foi e ainda é frequente em diversas regiões do nosso mundo;
- a venda de crianças era legal: ainda no séc. XII, Teodoro, Arcebispo de Cantuária, decretou que um filho só podia ser vendido como escravo a partir de sete anos; na Rússia, esta prática só foi proibida no séc. XIX;
- a entrega e/ou abandono de crianças a amas vem desde o Código de Hamurabi e da Coluna Lactária  de Roma até ao séc. XVIII em que as mães burguesas não gostavam de ser “vacas leiteiras” e “era chique ter uma ama em casa e não era chique parecer amar demasiado os filhos”;
- o trabalho infantil e violências decorrentes na indústria nascente na Inglaterra de fins do  séc. XVIII constituem a matéria prima dos romances de Charles Dickens e continuam hoje a alimentar a indústria de países emergentes;
- os meios actuais de comunicação social relatam, cada dia, episódios do abandono dos filhos na rua, do recrutamento de crianças-soldados, dos submundos de tráfico da droga, dos horrores da pedofilia, dos raptos para alimentação de bancos de órgãos humanos.
O horror do uso e abuso de crianças, tratadas como “coisas” ao serviço de “pessoas”, continua a desfilar, assim, perante os nossos olhos.

  “Toda a educação consiste em impor... “
Consideradas como “coisas” e não como seres vivos capazes de crescer e chegar por elas próprias àqueles “modos de ver, de pensar, e de agir”, a educação das crianças só poderá obter-se impondo-lhes tudo isso, normalmente através da violência:
- um texto sumério-babilónico relata que o aprendiz de escriba era castigado várias vezes por dia;
- outro texto egípcio recorda que “as orelhas do adolescente chegam até às costelas”, de tanto serem puxadas;
- na Grécia e nas escolas comuns, Marrou regista que imperava uma “pedagogia sumária e brutal”;
- em Roma, o verbo estudar andava associado ao manum ferulӕ subducӗre (estender a mão à palmatória) e o poeta Horácio rotulava o seu professor Orbílio de “O Espancador”;
- Sto Agostinho, nas Confessiones , recorda como “a criança pequena que eu era pedia-Vos, Senhor, com um fervor que não era pequeno, para não ser batido na escola”;
- em tempos do Renascimento, Robert Estienne, no seu Thesaurus Linguӕ Latinӕ, definia a criança como “um ser em que é preciso bater…” Nos colégios Jesuítas, havia um “Padre castigador”;
- já no séc. XVII, a história refere que Luis XIII de França, “aos 25 meses, começaram a açoitá-lo sistematicamente, muitas vezes despindo-o […]. No dia da sua coroação, com 8 anos, foi açoitado”;
        - os historiadores relatam que, até aos tempos recentes, a “punição era considerada como indispensável para obter, ao mesmo tempo, a disciplina escolar e os progressos no estudo”.

A caminho do reconhecimento da dignidade e dos direitos da criança
Verificamos assim, nos quatro parágrafos anteriores, como a ideia de educação ainda vigente há apenas 100 anos, dependia das estruturas dos tipos de sociedade e de família dominantes no longo período histórico anterior.
Por parte da sociedade, a estrutura era marcada pela separação entre as classes sociais no que respeita ao tempo livre de que apenas dispunham os homens livres, ou, mais tarde, à actividade estritamente intelectual, estudo, em que aquele tempo livre era ocupado pelos filhos dos mesmos homens livres.
No que respeita à família, os historiadores têm feito notar que a “família antiga”, daqueles tempos difíceis orientados para a pura sobrevivência, “não tinha função afectiva” e que a consciência da particularidade infantil, “que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem, essa consciência não existia”.
Na família romana só o pater-família era sui juris e detinha o poder absoluto sobre tudo o mais (alieni juris), com designação própria em cada caso: manus sobre a esposa, pátria potestas sobe os filhos, dominica potestas sobre os escravos, dominium sobre os bens móveis e imóveis. A pátria potestas sobre os filhos, também denominados nepotes (destituídos de poder), era absoluta, incluindo o jus vitӕ necisque (direito de vida e de morte).
Esta mentalidade da família antiga, “sem função afectiva”, entendida como monarquia absoluta, “um conjunto de pessoas sujeitas ao poder de um só” (Ulpiano, séc. III), embora totalmente desacreditada pelo cristianismo e o poder político que se lhe vai ligar (o Imperador Constantino, no séc. IV, equiparou o jus vitӕ necisque ao parricídio), continuará a resistir durante a Idade Média (recordar, como exemplo, a incrível organização, no séc. XIII, sob os auspícios do Papa Inocêncio III, da cruzada com um exército de 20.000 crianças para conquistar Jerusalém) e até à Idade Moderna avançada (ainda prevalece no teatro de Moliére, séc. XVII).

Por outro lado, já a partir das civilizações grega e romana mas de maneira decisiva a partir do Cristianismo, constatamos uma progressiva melhoria do clima social e cultural que permite a emergência do “sentido de infância”:
- na Grécia, desde Eurípedes (“ricos e pobres amam os seus filhos”) a Platão (“o homem livre não deve aprender nada como escravo”) e a Plutarco (“os castigos corporais são indignos de homens livres”);
- em Roma, de Juvenal (“maxima debetur puero reverentia”) a Plínio o Jovem (“usa a tua autoridade paternal sem esquecer que és homem e pai de um homem”) e a Ulpiano (“o poder paternal deve consistir em ternura e não em crueldade excessiva”);
- na Idade Média a partir da  evocação franciscana do Natal e do culto do Menino Jesus e, a seguir, através da adopção do vestuário próprio das crianças, e ainda do lugar que lhes é atribuído na produção artística, no centro de retratos de família (Rubens e Van Dyck) ou em separado os filhos da nobreza (Velasquez) ou os filhos do povo (Murillo), ou ainda nas inúmeras formas de anjo-criança-nua (putto)  das talhas douradas do barroco.
- nos séculos modernos através da reacção contra a violência escolar por parte de homens como Erasmo, Vives, Rabelais, Coménio, Montaigne que aconselhava agir “com uma severa doçura, não como se faz nos colégios” e Rousseau que reagia contra “essa educação bárbara que sacrifica o presente a um futuro incerto”, e aconselhava, no Emilio: “ama a infância, favorece os seus jogos, os seus prazeres, o seu amável instinto”.
Entretanto vai mudando também a maneira de ver a criança no plano Jurídico: considera-se que o antigo “poder paternal era apenas em função da debilidade da criança” (Rousseau), afirma-se que os direitos dos pais “são limitados pelas necessidades da criança” (Enciclopédia), fala-se dos direitos dos esposos, dos pais e dos filhos” (Revolução Francesa), o pater-famílias dá lugar ao “bom pai de família” e a potestas é contrabalançada com a pietas.
No séc. XIX desenvolve-se o conhecimento da criança, a pediatria (1872) e aparecem, curiosamente depois das Sociedades Protectoras dos Animais, as Sociedades Protectoras da Infância (1895).
Chegamos assim à transição para o séc. XX, designado no título do livro de Ellen Key (1900) “O século da criança” e ao eclodir da revolução da “Escola Nova” como primeiro passo para o novo paradigma da educação de infância.

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